Ontem revi um filme mágico em sua
essência, mas que trata com uma certa lógica extremamente real sobre
relacionamentos.
Um sujeito de gorro e ar de quem largou
a escola no segundo ano do ensino médio está num ônibus, rabiscando um
caderno.
Uma garota bonitinha, com os cabelos
pintados de azul, diz oi para ele.
Vem sentar perto, pergunta o que ele
está fazendo.
Eles conversam um pouco.
A garota é engraçada, vívida, e não
demora a dizer algo muito inconveniente para o rapaz. Pede desculpa, é
desculpada.
Diz outra barbaridade e a coisa fica
por isso mesmo.
Ela se sente, a partir de então,
autorizada a dizer qualquer coisa abusiva que lhe passar pela cabeça sem ter de
pedir desculpas depois.
Além de abusada, a garota é um poço de
narcisismo.
E, como todo narcisista que se preze,
tem uma inesgotável curiosidade a seu próprio respeito.
Dá uma deixa para que o rapaz diga que
ela é o máximo.
Ele morde a isca e diz, sim, você
parece ser uma pessoa muito bacana.
Ela o contesta, dizendo que na verdade
ela não é bacana, mas, sim, uma louca, uma megera vingativa. (Se uma mulher lhe
disser que é uma megera vingativa, não duvide. E, de preferência, saia correndo
rs...)
No dia seguinte o rapaz lhe oferece
carona, ela aceita e, chegando em casa, o convida para entrar.
Prepara duas bebidas, os dois ficam
sentados na sala, o papo não engrena, então ela comenta, você é meio quieto,
não?
Ele diz que a vida dele não é muito
interessante, por isso ele não costuma ter muito o que dizer.
Ela vem se sentar ao lado dele.
Eles começam a namorar.
Alguns meses se passam.
São três horas da manhã e o rapaz está
sentado numa poltrona, mão apoiada na testa, ar aborrecido.
A garota chega, vindo da rua. Está
bêbada, se joga num sofá e diz que bateu o carro. Apesar de o carro ser dele,
ele não a repreende por isso.
Limita-se a dizer que ela vai acabar se
matando e matando alguém se insistir em dirigir alcoolizada.
Ela lhe devolve uma provocação: você só
está bravo porque acha que eu estava por aí com outro.
Ele diz: sim, é verdade, acho mesmo,
não é exatamente isso que você sempre faz para que as pessoas gostem de
você?
A garota se ofende, pega suas trouxas e
vai embora.
E ele, claro, corre atrás dela,
implorando perdão.
O que leva um sujeito a ser tão
condescendente e tão servil em relação a uma mulherzinha tão
insuportável?
O problema de Jim Carrey no filme
“Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” é a imensa escassez e precariedade
em que vive.
Ele é um zé-ninguém sem qualquer chance
de ser redimido.
Ao levar o fora de Kate Winslet, sabe
que enfrentará uma seca braba, que não será tão cedo que irá aparecer, se é que
vai aparecer, outra garota tão bonitinha e tão gostosinha em seu pedaço.
Daí seu desespero. Se ele fosse rico,
ou pelo menos um jovem profissional bem sucedido (ou, vá lá, se ele não fosse
tão mané, tão fair play, tão resignadamente entregue às baratas), não faltaria
mulher para encher sua bola.
E Kate seria esquecida sem que ele
precisasse se submeter àquele brain damage maluco do filme.
Falei
em dinheiro, mas não quis dizer com isso que mulheres são interesseiras. (A
maioria não é, de fato)
Eu
simplesmente sei, por experiência própria, que é imprudente um homem se
envolver com uma mulher estando tão desguarnecido, não só com também
financeiramente.
Afinal,
relações amorosas são, entre outras coisas, exercícios de equilíbrio de
poder.
Se
falta dinheiro, não pode faltar a um homem, de jeito nenhum, a tal da atitude.
(Por falar em atitude, lembrei daquele deplorável personagem do Plínio Marcos,
em Navalha da Carne: “Sou Vadinho, cafifa escolado, judio das mulheres para
elas gamarem”.)
Talvez
o Jim Carrey tenha aprendido, depois de tanto sofrimento, que a ternura é
incapaz de segurar a onda de uma relação.
Que
o amor, por si só, dá conta de muito, muito pouco.
Tadeu
Silva ( 2012 Todos os direitos reservados )